quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Vícios modernos II O Viciado em gás lacrimogêneo


A primeira vez que T. sentiu aquele cheiro ficou doido, apaixonado, se é que se apaixona por um cheiro. O de gás lacrimogêneo, para ser mais exato.
Ele iria passear com a família eVm Niterói, mas ao chegar na Praça XV, para pegar a barca Rio-Niterói, acontecia o leilão da Usiminas, a primeira estatal privatizada em 24 de outubro de 1991. Ele via o tumulto: PMs jogando bombas de gás lacrimogêneo, com seus uniformes que pareciam com os do heróis americanos que via na TV.
Uns caras com jeito de bandidos, mal vestidos, correndo da polícia, apanhando. Aquele povo só podia ter feito algo muito errado. A visão e o cheiro do gás o marcaram. Sabe lembrança boa da infância? Alguns lembram do cheiro da primeira Barbie, do boneco Falcon, ou de bambolê.
T. só lembrava da agitação, da correria e do cheiro de algo que na época ele não sabia o que era, mas já sabia que desejava mais: bomba de gás. T. passou a infância com a família pobre, muito pobre. Tinha poucas diversões e alegrias. Acompanhava o mundo (o pouco que lhe interessava) assistindo à Rede Globo, seus desenhos, novelas, jogos e até os jornais. E nele via as nuvens de fumaça nos protestos e guerras. E ficava tentando imaginar os barulhos e cheiros.
Quando cresceu, ao acabar com dificuldades o ensino médio, tentou o vestibular para Química. Levou bomba. Sem chance. Ficou sem estudar, só trabalhando em subempregos, pois não tinha “habilidade intelectual” suficiente, segundo um resultado de uma empresa de RH.
Nunca aprenderia a fazer aquelas bomba de gás lacrimogêneo. Nunca sentiria aquele cheiro. Um dia passando na rua, um ex-professor lhe deu uma dica, ao ver ele descarregando um caminhão: porque ele, que era mediano em Matemática e Português, não tentava o concurso pra PM? Bastava acertar umas questões e fazer uma prova física. Disse que com aquele corpão todo ele passaria nas duas provas.
O professor até se ofereceu pra ajudar ele com provas antigas e grupo de estudos. T. estranhou aquele conselho, e mais o elogio, e muito mais a oferta de ajuda. Mas acabou aceitando e o professor ajudou mesmo. Tanto que ele passou. Com dificuldades, mas passou.  No curso preparatório, ele chorou. De alegria, e pelo gás. Sim, ele reencontrara o cheiro de infância.
Fora exposto a sessões com bombas de gás lacrimogêneo, para se preparar quanto tivesse que usar contra manifestantes. Os instrutores, surpresos, tinham que tirar T. de perto quanto iam usar as bombas.
Diziam que ele era viciado. Riam dele. E ele, nada. Só queria mais. Se esforçou tanto. Era o mais cruel nas passeatas: qualquer coisa, uma olhada mais forte de alguma pessoa, homem ou mulher, ele já mandava um spray de pimenta, sua nova alegria.
Fazia de tudo pra sentir, mesmo que de longe, aquele cheiro de novo, só que diferente, mais forte.
Era uma passeata sendo dispersa aqui, uma reintegração de posse ali. Tanto esforço não foi em vão. Foi convidado pra ingressar no Batalhão de Choque. Chorou de alegria. Passou no curso com nota mediana devido às provas escritas.
Mas nas provas práticas e de rua era insuperável. T. ficara “ousado”. Com escudo, colete, capacete e cassetete, se sentia Deus. Batia, corria; Eles imploravam, xingavam. E em resposta: bomba. Sim! Ah! Bomba. Se pudesse, ele levava pra casa.
23 anos depois, em junho de 2013, ele se sentia realizado. Jogava bomba todo dia, quase que de segunda a sexta. Era seu vício.
Sabia de cor e salteado tudo sobre ela, conversava nos bares, para as mulheres que ele achava estar conquistando: “Gás lacrimogêneo (do latim lacrima: lágrima) é o nome genérico dado a vários tipos de substâncias irritantes da pele, dos olhos e das vias respiratórias, tais como o brometo de benzila ou o gás CS (clorobenzilideno malononitrilo).
Ao estimular os nervos da córnea, esses gases causam lacrimação, dor e mesmo cegueira temporária. Por ser literalmente uma bomba, cujo destino é a população, é classificado como sendo uma arma química.
Embora considerada como não letal, o uso da expressão só atende a rotulação do produto para efeitos imediatos, que é o que se esperava tendo em visto a finalidade bélica. Suas fórmulas variam. Podem ser, por exemplo, cloro-acetona (CH3–CO–CH2–Cl), bromo-acetona (CH3–CO–CH2–Br) ou acroleína (CH2=CH–COH). O CS é mais forte que o CN, porém desvanece mais rápido. Qualquer composto químico que produza estes efeitos pode ser chamado lacrimogêneo, mas a denominação “agente de controle antidistúrbio” ou “gás lacrimogêneo” refere-se um produto químico lacrimogêneo escolhido por sua baixa toxicidade e por, supostamente, não ser letal.”
Mas T. hoje está sem poder sentir o cheiro que mais adora.
Fora suspenso, não ao usar suas bombas, mas um instrumento menos moderno de dispersão de manifestantes. Quebrara seu cassetete no professor que ao lhe dar as dicas,  o ajudou a entrar para  PM e sair do caminhão.
E postara a foto dele com os dizeres “Foi mal, Fessor”, numa rede social…


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